quinta-feira, 1 de abril de 2010

Vaidade despedaçada

“Eu li um livro que fala que quando os sonhos acabarem é porque a vida acabou. E eu não tenho mais eles.”
Ed, 39 anos.

Lágrimas não contidas, choro envergonhado e risadas tímidas. Todos os sentimentos misturados. Sensibilidade à flor da pele e memórias que prefere esquecer. São olhos vazios de perspectiva e marejados de lembranças.
Edvaldo da Silva, de 39 anos, tem vergonha do passado e mais ainda do presente. Envergonha-se da vida nas ruas, do cheiro de pinga impregnado em seu corpo, da boca desdentada e dos hematomas provocados pela embriaguez constante.
Carrega até hoje os traumas da infância e os sonhos da adolescência. Mas não se permite mais sonhar. Não tem mais esperança.
Dos amores, prefere não falar, mas revela ter tido três namorados maravilhosos. Não faz questão alguma de esconder a homossexualidade. Aliás, fala logo de uma vez que é gay, prefere evitar especulações quanto a sua opção sexual. O sorriso tímido passeia pelo rosto ao vasculhar na memória o tempo em que foi capaz de amar e ser amado.
Mas as lágrimas interrompem o sorriso quando conta que tem HIV. E imediatamente muda de assunto. Não deixa espaço para falar mais sobre isso, não quer falar. A revelação da doença que mais parece uma sentença de morte e perigo basta para perturbar a mente confusa deste pernambucano que vive perambulando pelas ruas de São Paulo.
Ed, como gosta de ser chamado, não escolhe lugar para dormir e não dorme sempre no mesmo lugar. Isso não importa para ele, qualquer calçada serve. A única exigência é ficar longe das pessoas. Ele não procura um grupo para se unir, prefere andar sozinho pelas ruas da cidade e não gosta de se aproximar das pessoas.
Não tem amigos, não tem sonhos, não tem planos. Não gosta de albergues, prefere a rua. E sente tanto frio. Sua vida mais parece um poema cheio de ‘nãos’ e de vazios.
- Eu só tive perdas e danos.
Foi para a rua depois dos 30 anos de idade, quando não admitiu a morte do pai, vítima de problemas cardíacos, e não suportou o falecimento da mãe dias depois. Perdeu os pais, os amigos, o trabalho, a identidade. Sabe apenas de onde veio, mas não sabe para que veio ao mundo. Para onde vai é uma questão inimaginável, sequer pensada. Ele não imagina sua vida daqui uns anos.
- Nem amanhã.
As perdas causaram danos irreparáveis para a vida de Ed.
- Toda minha família era unida. Hoje...toda minha família é espalhada.
Não tem mais contato com os irmãos. E nem quer. Até gostaria de ver os sobrinhos, mas não tem como ligar para eles. E eles também estão longe, moram no Rio de Janeiro. Melhor deixar tudo como está.
O passado é doloroso. Ed não entra em detalhes sobre a vida, mexer no passado e vasculhar a memória parece lhe causar um sofrimento ainda maior do que aquele vivido diariamente por ele. Com poucas palavras conta que estudou. Fez faculdade de moda.
- Trabalhei com celebridades. Trabalhei com tantas pessoas glamourosas. Entendo tanto de beleza, de delicadeza.
Mas logo muda de assunto. A beleza não faz mais parte da sua vida. Tem vergonha da própria aparência.
Vergonha. Palavra que Ed conhece muito bem. Palavra que esteve presente em sua vida desde a infância e insiste em continuar assombrando seus dias. Adjetivo presente em seu vocabulário, usado para descrever a própria vida.
Aos treze anos, quando ainda morava em Pernambuco, foi violentado sexualmente pela irmã. A mesma reuniu toda a família e contou que ele é homossexual.
- Achei uma coisa tão abominável. Eu era criança. Ela me envergonhou. A minha irmã me envergonhou perante toda a minha família.
As lágrimas não contidas e o olhar triste demonstram o sofrimento ao lembrar tudo o que aconteceu. A mágoa em sua voz e a entonação de suas palavras revela o quão nojenta foi a atitude da irmã para ele.
Da família guarda mágoas e ao mesmo tempo saudade dos tempos de criança, quando os pais ainda eram vivos e todos moravam em Pernambuco. Tempo em que a infância era feliz e a rua lugar seguro para brincar, e não palco das noites frias em claro bebendo.
Agora que vive nas ruas, agora que já perdeu mesmo tudo o que amava, lhe resta beber.
O cheiro de bebida vindo da boca de Ed denuncia que ele tinha acabado de beber – ainda eram onze horas da manhã. Ele pediu desculpas pelo cheiro do álcool, envergonhado. E muitas vezes se desculpou pela aparência feia, suja e pelo mau cheiro.
A bebida é importante para proteger do frio, enganar a fome, afastar os pensamentos e fazer dormir.
Ed gosta mesmo de vodca, mas se não tiver toma metanol, o importante é beber. Quanto mais, melhor. E para isso não tem horário. A bebedeira começa cedo e se estende ao longo do dia, é atividade constante, interrompida apenas pelo sono. Duas ou três garrafas diárias são o suficiente para fazer o efeito desejado: a perda da memória.
O álcool traz a leveza para quem carrega marcas tão pesadas de uma vida com cicatrizes incuráveis.
- Eu bebo para esquecer mesmo. Perder totalmente a memória. Esqueço totalmente a fome. Eu gosto de beber. Eu gosto. Eu esqueço, eu durmo.
As drogas não fazem parte de sua vida. Mas considera o álcool a pior coisa do mundo, entretanto não quer parar de beber.
Bebe todos os dias, e isso o deixa confuso quanto a própria vida, é difícil contar como é um dia em sua vida, como é a rotina. Parece que a bebida toma conta do tempo e ao mesmo tempo é a bomba relógio que pode levá-lo para onde estão os pais.
Quer esquecer o passado e não quer viver o presente. Diariamente alcoolizado e cambaleando pelas ruas, os tombos são inevitáveis.
- Todos os meus hematomas são de queda.
Para esconder a marca roxa do lado esquerdo do olho, passa base e pancake. A maquiagem, cuidadosamente guardada no bolso, representa a pouca vaidade que ainda lhe resta. Talvez a única ligação que tem com o passado.
O espelho reflete uma imagem já desconhecida, de uma pessoa que se esconde de si mesma, que se esconde das outras pessoas, que se esconde do mundo. E esse mesmo espelhinho é objeto fundamental para ver como está sua aparência e para retocar a maquiagem. Não quer mostrar as marcas da decadência.
Mas a vaidade não é mais como fora um dia. Está despedaçada dentro do peito, quebrada assim como os dentes – que também o envergonham tanto! Seria tão bom se pudesse restaurar a boca. Assim poderia voltar a sorrir sem colocar a mão na frente, sem se preocupar com a aparência. Poderia até mesmo conversar mais com as pessoas.
- Gostaria muito, muito, de restaurar a minha boca. Faria qualquer coisa, diz.
Talvez este seja o único sonho que Ed se permite ter. O único desejo que ainda gostaria de realizar. Enquanto diz que não tem sonhos porque a vida acabou, sonha em ter belos dentes para exibir o sorriso. Contradições da vida.
Mas para ele, que perdeu os pais, a família, o emprego, o gosto pela moda – que perdeu tudo – é tão difícil sonhar, desejar, amar, viver.
- Eu li um livro que fala que quando os sonhos acabarem é porque a vida acabou. E eu não tenho mais eles.
Pois é, a vida já não tem mais graça para este pernambucano que desembarcou em São Paulo e viu tudo desmoronar ao seu redor. Para ele é melhor ir embora. Não da rua, mas é melhor partir.
E, olhando para o céu com olhos cheios de sonhos despedaçados e lágrimas insistentes, apenas uma única frase é pronunciada:
- Pela falta de esperança.

Sensibilidade à flor da pele


As lágrimas foram constantes durante toda a entrevista, que foi uma das mais emocionantes e intensas. Ed chorou do começo ao fim, a ponto de soluçar e não conseguir falar.
Ao saber que uma jornalista estava no centro de São Paulo para fazer entrevistas com os moradores de rua, imediatamente me procurou, já com lágrimas nos olhos. Não foi difícil perceber que falar do passado é difícil e doloroso para ele.
Em muitos momentos Ed pediu para desligar o gravador. Sem gravar ele se sentia mais a vontade e livre para falar qualquer coisa, sem se importar com o que estava dizendo. Várias vezes ele me perguntou: “Você quer sinceridade, né?”, e diante da minha resposta positiva, continuava a falar sobre a vida.
Já no começo da entrevista ele me contou que é homossexual, sem nenhum pudor. Mas não quis falar muito sobre isso. Não sei se sua opção sexual interferiu ou interfere de alguma maneira na sua vida nas ruas.
O cheiro da pinga revelava que ele tinha acabado de beber, e ao perceber isso logo se desculpou e confessou que realmente tinha bebido. Aliás, muitas vezes ele pediu desculpas pelo cheiro e colocou as mãos na boca, como se isso fosse impedir que o cheiro do álcool escapasse pelos dentes quebrados.
Este é um personagem que me impressionou muito por causa da forte emoção. Chorou sem parar do começo ao fim. Os risos eram sempre entre lágrimas. Os sorrisos, envergonhados. O Ed me impressionou também pelo carinho com que me tratou. Diversas vezes me elogiou, agradeceu pela conversa e disse ter prazer em conversar comigo. Afirmou que aquela conversa estava lhe fazendo bem, apesar de ser uma pessoa que não gosta de conversar.
Provavelmente não o verei novamente. Ele não tem um ponto fixo na cidade para dormir, não freqüenta nenhuma instituição social, anda pelas ruas sem destino e quase sempre inconsciente por causa do álcool. Mas tenho certeza de que a sua imagem ficará para sempre guardada na minha memória.
A emoção, a delicadeza e o carinho dele me surpreenderam e me encantaram.


* Primeiro capítulo do livro-reportagem Contos da Rua (Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo da FIAM - Faculdades Integradas Alcântara Machado).